Luciano Magalhães Melo

Médico neurologista, escreve sobre o cérebro, seus comandos, seus dilemas e as doenças que o afetam.

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Luciano Magalhães Melo
Descrição de chapéu Coronavírus

Da encefalite letárgica à Covid-19

Infecção pelo Sars-CoV-2 tem sido relacionada a algumas alterações mentais

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No final de 1916, o neurologista Constantin von Economo, em Viena, notou que vários pacientes padeciam de um conjunto de sintomas até então incomuns: febre, sonolência excessiva e incapacidade de movimentar os olhos. Todos ficavam estáticos por muitas horas. Alguns sobreviventes passaram a ter uma condição progressiva, muito semelhante à doença de Parkinson. Von Economo percebeu que estava diante de uma situação distinta e a nomeou de encefalite letárgica. Registros históricos apontam que o surto notado pelo neurologista surgiu em 1915 na Romênia, e em 1920 tomou o mundo.

A encefalite letárgica foi contemporânea a dois outros flagelos da humanidade: a Primeira Guerra Mundial e a gripe espanhola. O conflito bélico provocou um intenso fluxo de combatentes entre fronteiras, o que facilita a disseminação das pandemias.

Por sua vez, não há certeza se houve alguma ligação entre a gripe espanhola e a encefalite letárgica. Especulou-se que ambas as condições seriam causadas pelo mesmo vírus. Outra teoria sugeriu que o vírus da gripe auxiliaria um vírus não identificado, oportunista, a atacar. Porém os padrões de alastramento e os epicentros foram muito diferentes, constatações que afastam as duas pandemias. E até hoje não sabemos a causa da encefalite letárgica.

Pessoa segura cérebro
As alterações mentais frequentemente persistem após a cura da Covid - Denis Balibouse/Reuters

Essa misteriosa pandemia deixou um lastro histórico, exemplificando uma doença capaz de se propagar através dos continentes e, de provocar distúrbios neurológicos progressivos. Mesmo quando o agente infeccioso nem existe mais dentro do indivíduo.

Podemos viver algo semelhante desencadeado pela pandemia atual? Questão que paira sobre nós como uma neblina medieval. Pois frequentemente os sobreviventes da Covid-19 apontam dificuldades emergentes em discernir prioridades, em entender as sequências entre as etapas de qualquer processo e em recordar. Esses problemas não são exclusivos dos que sofreram formas graves da doença.

Essas alterações mentais frequentemente persistem após a cura da infecção. O novo coronavírus pode prejudicar o raciocínio seguindo modos tradicionais, velhos conhecidos da medicina. Por exemplo, por comprometer órgãos como pulmões ou rins. Pois a insuficiência de qualquer sistema orgânico, quando grave, empobrece a cognição.

Ademais, o Sars-CoV-2, às vezes, provoca isquemias cerebrais, uma causa impactante contra o intelecto. Entretanto, muitos sobreviventes com problemas de raciocínio não tiveram isquemias e seus órgãos que não cuidam da mente já funcionam perfeitamente. Portanto, o novo coronavírus deve operar de outras formas para afetar o intelecto.

Existem outras incertezas em relação à interação entre Sars-CoV-2 e cérebro. Os distúrbios que despontam dessa relação seriam progressivos, irreversíveis ou transitórios? A experiência clínica até o presente aponta que há recuperação, mas é adequado ter cautela. Catastrofismo ou realismo à parte, más notícias podem surgir, apontando outra fase da epidemia, desta vez com um crescente de sequelas intelectuais na população, tal qual a moda da encefalite letárgica.

Essas preocupações foram mote para o neurologista Jonas Hosp, da Universidade de Freiburg, investigar como a Covid-19 afeta a atividade cerebral. Suas conclusões, impressas recentemente na revista Brain, trazem alguma luz sobre o assunto.

O pesquisador descobriu haver um padrão de comprometimento cerebral causado pela Covid-19, em que apenas específicas partes cerebrais deixam de funcionar adequadamente. Essas áreas são as responsáveis por nossa habilidade de elaborar, organizar, sequenciar e recordar. Essa marca bem característica não deve ser fruto de um amontoado de fatores, como fadiga, efeitos colaterais de medicações e disfunções respiratórias. Mas de um característico ataque contra o cérebro.

A necropsia em um dos pacientes estudados por Hosp revelou ativação de células de defesa cerebral e nenhum dano permanente. Isso aponta que o Sars-CoV-2 afeta o cérebro de uma forma indireta através de inflamação.

Ora, esse microrganismo é um grande causador de inflamações, que eventualmente ganham o encéfalo e continuam mesmo depois do vírus nem mais estar nesse órgão. Os distúrbios intelectuais não parecem surgir por ação direta destrutiva do vírus contra o cérebro.

Ao que parece, não será desta vez que teremos uma onda tardia, de sequelas cognitivas progressivas.

Referências:

1-Hosp JA, Dressing A, Cognitive impairment and altered cerebral glucose metabolism in the subacute stage of COVID-19. Brain. 2021 Apr 3:awab009. doi: 10.1093/brain/awab009. Epub ahead of print. PMID: 33822001.

2- Leslie A Hoffman, Joel A Vilensky, Encephalitis lethargica: 100 years after the epidemic, Brain, Volume 140, Issue 8, August 2017, Pages 2246–2251, https://doi.org/10.1093/brain/awx177

3- Blazhenets G, Schröter N, Slow but evident recovery from neocortical dysfunction and cognitive impairment in a series of chronic COVID-19 patients. J Nucl Med. 2021 Mar 31:jnumed.121.262128. doi: 10.2967/jnumed.121.262128. Epub ahead of print. PMID: 33789937.

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